agosto 14, 2007

Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os braços, e seguros


De que seria bom que eu os ouvisse


Quando me dizem: "vem por aqui!"


Eu olho-os com olhos lassos,


(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)


E cruzo os braços,


E nunca vou por ali...


A minha glória é esta: Criar desumanidade!


Não acompanhar ninguém. - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade


Com que rasguei o ventre à minha mãe


Não, não vou por aí!


Só vou por onde


Me levam meus próprios passos...


Se ao que busco saber nenhum de vós responde


Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,


Redemoinhar aos ventos,


Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,


A ir por aí...


Se vim ao mundo, foi


Só para desflorar florestas virgens,


E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!


O mais que faço não vale nada.


Como, pois sereis vós


Que me dareis impulsos,


ferramentas e coragem


Para eu derrubar os meus obstáculos?...


Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,


E vós amais o que é fácil!


Eu amo o Longe e a Miragem,


Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide!


Tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,


Tendes pátria, tendes tectos,


E tendes regras,


e tratados, e filósofos, e sábios...


Eu tenho a minha Loucura !


Levanto-a, como um facho,


a arder na noite escura,


E sinto espuma, e sangue,


e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam,


mais ninguém.


Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;


Mas eu, que nunca principio nem acabo,


Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!


Ninguém me peça definições!


Ninguém me diga: "vem por aqui"!


A minha vida é um vendaval que se soltou.


É uma onda que se alevantou.


É um átomo a mais que se animou...


Não sei por onde vou,


Não sei para onde vou


- Sei que não vou por aí!



José Régio

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