fevereiro 03, 2010

Tudo isto...

Tudo isto já beijou a dúvida na boca. Tudo isto já fingiu ter tempo para regressar. Tudo isto já supôs que agora seria diferente. Tudo isto já se empenhou em derrotar seis ou sete pessoas. Tudo isto já foi roupa a secar e a proximidade da noite. Tudo isto já encantou o estrangeiro. Tudo isto já se sentou à espera de ver. Tudo isto já rasgou o que não interessava e o que demais interessava. Tudo isto já despiu a vergonha. Tudo isto já foi de avião à sua lucidez futura. Tudo isto já enfrentou o desespero com duas moedas apenas. Tudo isto já se cansou de buscar modos de dizer. Tudo isto já foi mercúrio. Tudo isto já caiu a meio da noite sem que ninguém lhe tocasse. Tudo isto já deu o nome errado. Tudo isto já pediu para trocar tabaco. Tudo isto já se intrometeu. Tudo isto já foi demais para caber num corpo. Tudo isto já mordeu os lábios por lhe sobrar o desejo. Tudo isto já comentou as notícias terríveis a mais de cinco metros de distância. Tudo isto já presenciou a morte e o nascimento. Tudo isto já permitiu que entrasse. Tudo isto já sentiu os nervos como cordas. Tudo isto já deixou alguém adormecer. Tudo isto já inalou o ópio suave do reencontro. Tudo isto já percebeu que pode acontecer.

Vasco Gato

janeiro 13, 2010

Ser possível ser-se feliz...

Falar-te-ei de como se erguem
em flor as sementes,
de como o luar pode desfazer
a solidão de um nome
e atirar-nos para o lugar das mãos.

ao longe, a púrpura dos dias,
do ar respirado, da vida
que não pára de bater
em cada grão de terra
- nas tuas mãos, o meu
coração de lã e o frio
que não mais te tocará
por ser possível ser-se feliz.



Vasco Gato

janeiro 05, 2010

Limpezas

Vamos fazer limpeza, mas geral
e vamos deitar fora as coisas todas
que não nos servem para nada, essas
coisas que não usamos já e essas
que nada fazem mais que apanhar pó,
as que evitamos encontrar porquanto
nos trazem as lembranças mais amargas,
as que nos fazem mal, enchem espaço
ou não quisemos nunca ter por perto.


Vamos fazer limpeza, mas geral,
talvez melhor ainda uma mudança
que nos permita abandonar as coisas
sem sequer lhes tocar, sem nos sujarmos,
que fiquem onde sempre têm estado;
vamos embora só nós, vida minha,
para voltar a acumular de novo.


Ou vamos deitar fogo ao que nos cerca
e ficarmos em paz com essa imagem
do braseiro do mundo face aos olhos
e com o coração desabitado.


Amalia Bautista