março 16, 2009

É muito bom e faz muito bem...


Sair dos dias. Não dormir. Não falar com ninguém. Ficar de fora do lá de fora. Ocupar o coração. À força. Ser como ele.
É muito bom e faz muito bem.
Espera-se um bocadinho e, pouco a pouco, ele começa a correr para dentro de nós, aflito por atenção. Traz as coisas que adiámos, em que não reparámos, que não tivemos tempo de cuidar. E primeiro vêm as mágoas. A felicidade que recusámos. Sem saber. Sempre sem saber. A tristeza de que fugimos. Voltam.

É muito bom e faz muito bem.

Sair de nós. Cair nos outros. Não escrever. Ler. Não pensar. Lembrar. Os amigos quietos. O murmúrio do riso que riram. A família parada. O colo onde cabe a cabeça. O amor adormecido. Estas coisas acordam. E sossega saber que nós não somos nada sem eles. E mesmo com eles, quase nada. Escravos de carinhos somos nós, seguindo atrás, de braços abertos, numa fila sem fim.

É muito bom e faz muito bem.

Sair dos trabalhos, do dinheiro, das palavras que nada querem ou conseguem dizer. Fazer gazeta. Faltar. Desobedecer. É um trabalho também. Não ir. Não responder. Não entregar. É cumprir também. Desmergulhar. Desfazer. Desacontecer. São tarefas também. Ainda mais difíceis, talvez.

É muito bom e faz muito bem.

Sair da ordem. Cair na doçura do acaso. Trocar de caos. Descer. Vestir a mesma roupa. Não fazer a barba. Beber. Fumar. Sem pausa. Sem razão. Ceder. Emergir. Abandalhar. Fazer o que não se está a fazer. Esticar a corda. Não atender. Desarrumar os livros. Passear pela casa como se fosse uma cidade destruída. Estragar.

É muito bom e faz muito bem.

Sair da vontade. Cair na estupidez. Não descansar. Ver televisão numa língua que não se compreenda. Forçar. Esquecer. Fazer o que não apetece fazer. Contrariar. Confundir. Comer atum de conserva com uma colher. Pôr o despertador para acordar mal se comece a adormecer. Dizer disparates em voz alta. Todos agora. Virar o bico ao prego. Arrepiar. Arrepender.

É muito bom e faz muito bem.

Sair do corpo. Cair na alma. De chapão. Sem ver nada à frente. Receber os mistérios. Sem cerimónias. Sem compreender. Ser absorvido. Subjugado. E agradecer. Perder o norte, o fio, os sentidos. E gostar. Divertir. Desprender. Chafurdar na lama. Acriançar. Rir. Começar a chorar. Ser levado, enlevado, enganado, desprotegido, confuso, cruel. Desviado.

É muito bom e faz muito bem.

Sair da vida. Cair na morte. Sofrer. Iludir. Acabar. Permanecer na cama. Pensar em tudo o que se faz como se fosse a última vez. Esmorecer. Querer voltar atrás e fingir que já não se pode. Confessar. Pedir. Esvaziar. Ter pena de quem se foi e do que se fez. Rejeitar o perdão, a redenção, a última oportunidade.

É muito bom e faz muito bem.

É tão bom e faz tanto bem que, às vezes, cada vez mais, não apetece regressar. Tanto que só nos resta levantarmo-nos de onde caímos e, deixando-nos conduzir por tudo o que nos tolheu os passos desde o dia em que começamos a errar, na contramão das nossas almas, só nos resta procurar um sítio onde a nossa ida não se reconhece, não se aceita, não faz sentido, e entrar.

Entrar aqui. Daqui de onde nunca se sai. E ficar.

Miguel Esteves Cardoso

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