que só te falta um pretexto
para seres feliz
estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela,
e sem que eu nada diga,
sente a trémula, tocada coluna de ara sorvo e sopro,
ó
táctil, ininterrupta,
e a tua mão sinta contra mim
quanto aumenta o mundo
Herberto Helder
O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o amor antigo, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
Amo-te porque não me amo inteiramente. O que me falta é infinito mas tu és do bem que me falta o enigma onde se condensam a terra e o sol o ar as águas invioladas e tenho a boca cheia de música ondulação do teu silêncio.
És já quase nada. E choro por isso. Por teres sido tanto durante tanto tempo, que agora sinto-me vazia e perdida por seres já tão pouco. As lágrimas já não correm como dantes. Aparecem por vezes, tímidas e escassas porque me ponho de propósito a pensar em ti.Não como dantes em que eras parte anatómica de mim e chorar-te era chorar-me. Tenho de propósito parar para pensar. E choro por isso. Choro só eu, tu já não. Tenho de construir novos sonhos, novas nuvens para nelas perder a cabeça e novas estrelas para lhes pedir desejos. E isso custa. E choro por isso. Cada música ouvida e cada poema lido já não têm nem o teu rosto nem a tua voz. Lugares onde antes te sentia presente estão agora cheios de outras presenças, as nossas, já não as sinto. Cheiros que me levavam a momentos tão intensos que quase me faziam deixar de respirar, agora têm só leve aroma a nada. Sou eu agora.Tenho-me a mim. Sózinha. Era como se me sentisse mais forte e mais acompanhada por ter dois corações em mim. Agora só tenho o meu e tem de aprender a bater por si. Sózinho.
Vem aos meus sonhos, faz em mim a tua casa. Planta, em frente, a cerejeira dos pássaros brancos, deixa que eles pousem nos ramos e cantem eternamente, deixa que nas suas asas de luz eu leia o meu nome, antes de os relâmpagos acenderem os prados. Vem aos meus sonhos, vê os labirintos por onde me perco, vê os meus países do mar, vê, em cada barco que parte do meu coração, as viagens que não fiz, os amores que não tive, a luz cruel da minha solidão. Vem aos meus sonhos, traz um fio de água para as dálias do meu quarto vazio, não queiras que as suas pétalas sequem muito depressa, caindo pelos delicados muros de cristal, apagando a cor que dava vida aos aposentos do solitário. Deixa que ele evoque a secreta doçura das colmeias, e vem, vem aos meus sonhos, ilumina o meu domingo de cinzas, o meu domingo de ramos, o meu calvário, diz que estás aqui, nesta página que escrevo para nunca te esquecer.
não te pergunto de onde chegas?,
porque sei para onde vais.
hoje é a hora exacta em que até o vento
até os pássaros desistem.
e a noite a teus pés é um instante
e um destino.
não te pergunto onde está o teu rosto,
tantas vezes ocluso e pisado sobre os ramos,
onde está o teu rosto?
nem te peço que incendeies o teu nome
numa nuvem nocturna,
nem te procuro.
és tu que me encontras.
ficas no rio que passa,
nada de um tempo que não existe,
nem correntes, nem pedra, nem musgo,
nem silêncio.
José Luís Peixoto
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã, acordarei
entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela. e a luz
compreenderá a impossível compreensão do amor. um dia, quando
a chuva secar na memória, quando o inverno for tão distante,
quando o frio responder devagar como a voz arrastada de um velho,
estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da nossa janela.
sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso será culpa
minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi nem uma
palavra, nem o princípio de uma palavra, para não estragar a
perfeição da felicidade.
José Luís Peixoto