agosto 05, 2008

Teço delicadamente a angústia de não poder simplesmente abrir-te os braços como quem apanha o comboio para um país distante e nada tem como bagagem

(tu és esse país).

Não sabes como é isto. Este tecido que vai crescendo lento como uma manta que se deita sobre alguém que adormeceu

(queria fugir)

abruptamente. Não sabes como é isto. Querer tocar-te as sobrancelhas como quem se lembra de tocar piano com as mãos vagarosas e um pouco tristes

(abro o maço dos cigarros)

das mulheres que fazem renda de bilros, trocando as peças minuciosamente no mesmo ritmo de sempre. Não sabes como é olhar-te nessa elegância de pássaro e mandar para trás o dedo que se estende em direcção ao teu sorriso

(ponho um cigarro na boca como quem te morde as asas).

Teço delicadamente e de cor os contornos da tua cara toda. Sei de cor, sem nunca os ter tocado com a ponta da língua, os teus dentes que queria abrir como quem apanha o autocarro em direcção à noite e vai

(sem nada)

para se deixar estar. E tu não sabes como é isto. Querer simplesmente abrir-te a boca com o vagar de quem passeia entre castanheiros antigos e é um deles

(exactamente um deles)

à espera do fruto. Ponho um cigarro na boca. E o fumo sobe a traçar rotas para longe, que não sigo. Seguro a angústia entre os dedos

(médio e indicador)

com a mesma força de quem esmaga a beleza insuportável das tuas pestanas. E eu gosto da tua cara apenas feita para contrariar a inutilidade dos meus dias. Tu não sabes como é isto. Querer tocar-te onde o teu cabelo nasce como quem põe as mãos debaixo de torrentes de água fria

(e não estremece).

Eu gosto das tuas pernas magras que não andam como as demais. Dos teus braços estreitos como asas desengonçadas. Das tuas mãos que nunca pousaste sobre mim. Da tua barriga lisa e constante onde

(se)

podia afogar toda a angústia que é amar-te sem o tacto. O mesmo sentido que uso para abrir maços de cigarros e tomá-los entre os dedos, um atrás do outro, com a mesma urgência com que te tomaria o sexo

(esse país).

Eu gosto dos teus ombros que inclinas suavemente como um olhar que se perde no chão e não consegue encontrar o caminho de regresso. E tu não sabes como é isto. Querer endireitar-te os ombros. Dar-te um mapa que os teus olhos pudessem seguir sempre e nunca em frente

(a transparência).

Teço delicadamente a angústia de te amar sem

(sentido)

o amor táctil que votamos às coisas importantes

(os livros, os maços de cigarros)

e sob a a manta abrupta

(impalpável)

adormeço.

Caetano Veloso

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